terça-feira, 20 de outubro de 2020

Nos 100 anos de Castrim, um “novo” livro: Novelas

                                                Mário Castrim, Ria de Aveiro, 1968

Comemora-se, este ano, o centenário do nascimento de Manuel Nunes da Fonseca (Ílhavo, 31 de Julho de 1920 – Lisboa, 15 de Outubro de 2002), que usou o pseudónimo Mário Castrim, tendo sido escritor, jornalista, conhecido crítico de televisão (antes e depois do 25 de Abril de 1974), professor, e tendo alcançado merecido reconhecimento enquanto original autor de livros para a infância e a juventude. Várias efemérides, aliás, têm assinalado a comemoração dos seus 100 anos – mas, vá-se lá saber porquê, não se espere encontrar matéria publicada, ou áudio, nos media dominantes, mesmo nos media culturais. Esses mesmo media que têm aliás ignorado outros centenários importantes, como os de Mário Sacramento ou de Sidónio Muralha, igualmente assinalados este ano. 

Além de estimável, por vezes surpreendente (e militante) poeta (por exemplo em Do Livro dos Salmos (2007) ou em Mais Poemas do Avante! (2020), recolha recentemente publicada pelas Edições Avante!),  Mário Castrim foi um prosador/contador de muito mérito. Evidenciam-no as suas narrativas para jovens O Cavalo do Lenço Amarelo É Perigoso (1971), emblemática parábola sobre o direito à vida e à liberdade, O Caso da Rua Jau (1994), em torno da escola anterior ao 25 de Abril e da escola já em democracia, ou ainda Váril, o Herói (1994), misto de romance de aventuras e de conto maravilhoso tradicional de matriz mitológica que, declinando a condição todo-poderosa dos deuses, afirma a vontade humana de viver uma existência plena. E estes são apenas alguns exemplos dos seus livros em prosa.

 

Ora é, justamente, em torno do «ofício de viver» (vou buscar o título de Pavese) e de sobreviver, das voltas do amor e do desamor, dos conflitos relacionais, dos muitos e diversos quotidianos lisboetas, é em torno disso e de muito mais que se movem as prosas de Novelas (Página a Página, 2020) – recolha de textos curtos, não raro bem-humorados, como era timbre de Castrim, saídos, no final da década de 90, no jornal 24 Horas. 

 

O título é um pouco ludibriador, pois aqui o sentido de novela não remete propriamente para aquele género narrativo tradicional de todos conhecido, mais longo que o conto, menos extenso que o romance, mas sim para um certo sentido comum e popular do termo, quando, a propósito dum enredo, dum novelo amoroso ou doutro tipo, que se estende no tempo e evoca episódios telenovelescos, dizemos algo como: «Ui, foi cá uma novela!». 

 

Trata-se portanto de 145 narrativas breves mas não superficiais, de leitura prazerosa e fácil, situadas entre o conto e a crónica jornalística inspirada no real quotidiano, conjunto a que não falta sequer um episódio da clandestinidade comunista de meados da década de 60 e outras alusões à condição militante do autor. 

 

É isto o que Novelas essencialmente nos propõe. Em boa hora, pois, se resgatou este conjunto de textos à efemeridade do jornal e se lhe conferiu a dignidade, merecida, do volume impresso. A maneira ideal de comemorar o centenário de um antifascista e democrata, de alguém que sempre se preocupou ao longo da vida em estimular o pensamento crítico, e de um poeta e prosador de méritos reconhecidos. 

 

 

José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto

 

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Louise Glück (n. New York, EUA, 1943) – Dois poemas da Prémio Nobel da Literatura 2020

 






 

 

 

Confissão

Dizer que nada temo

seria faltar à verdade.

A doença, a humilhação

assustam-me.

Tenho sonhos, como qualquer pessoa.

Mas aprendi a ocultá-los

para me proteger

da plenitude: a felicidade

atrai as Fúrias.

São irmãs, selvagens,

que não têm sentimentos,

apenas inveja.

 

 

Primeira recordação

 

Há muito tempo fui ferida. Vivi

para me vingar

do meu pai, não

por aquilo que ele era

mas pelo que fui eu: desde o começo dos tempos,

na infância, acreditei

que a dor significava

que eu não era amada.

Significava que eu amava.

 

 

 

Versão portuguesa: José António Gomes