O grande leitor
Foi com a minha avó Deolinda, que era professora do primário da época, que aprendi a ler, mas foi com David Mourão-Ferreira que aprendi verdadeiramente a ler um texto. O David era um leitor extraordinário. Partia de dois princípios: primeiro, que era necessário traduzir um texto, não por alto, mas em todas as suas articulações, para o começar a compreender (traduzir um poema é uma tarefa fascinante); em segundo lugar, que era preciso aprender a dizê-lo em voz alta para continuar a perceber o que o poema queria dizer (ou, se preferirem, aquilo que ele dizia sem querer). Como se diz num poema de Zeca Baleiro aproveitado para uma canção por Simone, "eu não sei dizer / o que quer dizer / o que vou dizer". O que se verifica é que este querer dizer é uma decisão de ninguém. Do dizer em si mesmo.
O David chegava à aula e pegava num poema barroco. Lia-o e nós entendíamos como uma voz dá corpo ao poema. Ficávamos deslumbrados. Mas, para além desse momento de arrebatamento, havia toda a fase analítica. Porque amar implica trabalho. E nisso é que David era um leitor admirável – e único. Grande poeta, grande tradutor, era também um grande intérprete vocal dos poemas. (…)
Eduardo Prado Coelho, “O grande leitor”, Público, 1-11-2005
Ladainha dos póstumos Natais
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
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David Mourão-Ferreira
Obra Poética