Muitas vezes rotulado como o escritor “oficial” de Timor-leste, Luís Cardoso ultrapassa largamente essa condição de romancista associado a uma literatura emergente, praticamente tão nova como o país com o qual surge conotada. A localização espacial das suas narrativas, em particular os quatro romances, Crónica de uma Travessia – A Época do Ai-Dik-Funam (1997), Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo (2001), A Última Morte do Coronel Santiago (2003) e Requiem para o Navegador Solitário (2007), naquele país, cuja história recente serve de pano de fundo a enredos complexos e questionadores, não inibe leituras mais abrangentes, capazes de estabelecerem relações entre o local e o universal, para além de problematizarem questões pertinentes relacionadas com a identidade (nacional, cultural, linguística, religiosa…) ou com o próprio sujeito e com a sua descoberta e afirmação.
É certo que a realidade timorense, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, conhece, nas narrativas de Luís Cardoso, um destaque particular. A paisagem e todas as suas facetas, com especial destaque para o relevo, mas também para a flora e fauna, os habitantes e as diferentes línguas e culturas (incluindo tradições, imaginários e mitos) que convergem no estreito território timorense, manifestações de múltiplas e multifacetadas identidades, a que se juntam miscigenações várias, são revisitados e recriados através de uma perspectiva narrativa que, sem deixar de singularizar cada um destes aspectos, os reenquadra e reequaciona segundo um ponto de vista universal.
No caso do primeiro romance do escritor, Crónica de uma Travessia. A época do Ai-Dik-Funam (1997), assistimos ao cruzamento de uma linha narrativa assumidamente histórica, com referências concretas a factos e a figuras conhecidas, com outra de cariz autobiográfico. É desta intersecção que se constrói – ou se procura construir – uma imagem unificadora de Timor-leste, dando conta da instabilidade e da transitoriedade que marca o território e, consequentemente, as suas gentes, vivendo uma insularidade particular. A memória e a identidade são, deste modo, os eixos coesivos de um romance onde as viagens, realizadas em múltiplas direcções e com distintas finalidades, têm lugar de destaque, estruturando a realidade e a própria organização temporal e espacial. É por isso que ao reescrever a sua história e a da sua família, em particular a do próprio pai, o narrador reflecte sobre a história de Timor-leste e sobre a forma como ela se confunde com a dos seus habitantes. As ocupações, as invasões, as guerras, a independência, os exílios e a diáspora ajudam a construir uma espécie de identidade precária que, um pouco à semelhança das vagas memórias do velho enfermeiro, corre risco de se perder enquanto deambula ao sabor de incontroláveis ventos e marés. A sua morte em Portugal, no final do romance, impossibilitando o regresso a casa, pode ser lida enquanto requiem pela perda de Timor e pelas suas parcas hipóteses de sobrevivência, mas, também, enquanto esperança renovada numa Primavera redentora, de que a cena final é simbolicamente metafórica.
Ficha
Luís CARDOSO, Crónica de uma travessia. A época do Ai-Dik-Funam, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997
Ana Margarida Ramos
Universidade de Aveiro; membro associado do NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)