domingo, 11 de fevereiro de 2024

Miguel Torga, sempre



Nasceu na terra a que chamou, e bem, um “Reino Maravilhoso” e continua a perfilar-se como um dos nossos escritores maiores, além de ter sido alguém que sofreu na pele (ele e os seus, diga-se de passagem) a perseguição do fascismo: livros apreendidos e proibidos, prisão no Aljube, saídas do país interditadas… Tudo porque sonhava com a liberdade, com a democracia, com um país melhor e mais justo…


Os seus livros de contos são clássicos modernos da nossa ficção e um tributo inesquecível à paisagem natal e às suas gentes e animais (bem sei que “Miura”, o toiro, é ribatejano e que “Vicente”, o corvo, representa o Homem e, de alguma maneira, o próprio autor). Falo sobretudo de Bichos, 1940, de Contos da Montanha, 1941, de Novos Contos da Montanha, 1944, e doutros. Os seus belíssimos poemas breves incluídos no Diário (1941-1994, dezasseis volumes de reflexão) – focados no universo da infância e na terra –, os Poemas Ibéricos, 1965, e outras recolhas impõem-no como poeta maior a ser lido e relido. Sempre. O seu livro Portugal, 1950, é da melhor prosa que, em literatura, se escreveu acerca do país. E depois, há ainda a obra de cunho autobiográfico (A Criação do Mundo, retrato de si e do mundo, em vários volumes saídos entre 1937 e 1981), a novela e o romance (O Sr. Ventura, 1943, Vindima, 1945, este centrado no Alto Douro) e ainda os textos para teatro que escreveu, como, por exemplo, Mar, 1941. Lopes-Graça, Luís Cília, Rui Veloso, João Braga e outros puseram-no em música. E bem. 


Nos cinquenta anos do 25 de Abril, é bom, é importante evocar esta figura maior das letras, da cidadania, da luta pela liberdade e, sobretudo, lê-lo, dá-lo a ler, e reviver todo o gozo que a leitura de vários dos seus livros é capaz de proporcionar.


Uma nota final, com uma sugestão de leitura de O Meu Primeiro Miguel Torga, pequena biografia belissimamente ilustrada por Inês Oliveira, que escrevi sob o pseudónimo de João Pedro Mésseder e que inclui poemas e fragmentos doutros textos do autor de Nihil Sibi (1948). Trata-se duma forma possível de introduzir os mais jovens ao que foi a aventura humana e artística da vida do escritor. Editada pelas publicações Dom Quixote em 2009, a obra encontra-se recomendada pelo PNL (Plano Nacional de Leitura) e obteve um destaque do Júri do Prémio Nacional de Ilustração no mesmo ano.


A 17 de Janeiro de 2024, passaram vinte e nove anos sobre a morte de Torga. E a sua literatura continua viva. 

 

 

José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)

domingo, 1 de outubro de 2023

Finalmente, O Diário de José Miguel Braga



O texto que se segue configura um comentário sem pretensões a ser trabalho de crítica literária, embora possua elementos críticos. Por outro lado, é escrito por quem conhece pessoalmente o autor, José Miguel Braga, há vários anos, o que em parte explica o registo algo informal, e até com notas humorísticas, adoptado. Que um dos seus propósitos seja atingido: convidar à leitura crítica deste belo livro.

*

Roam-se. Roam-se de inveja. Hoje, hoje mesmo de manhã, o carteiro trouxe-me o grosso volume Entre o Medo e a Luz 2020, Um Diário, de José Miguel Braga, acabadinho de sair dos prelos da UMinho Editora, com prefácio e certo gás da minha velha amiga Bé, sempre jovem, diga-se de passagem. Ou melhor, de Ana Gabriela Macedo (peço mil desculpas), professora catedrática da Universidade do Minho, especialista em Estudos Feministas, em Literatura Comparada e minha antiga colega de faculdade. 

Já o folheei (mas prometo que não o desfolharei, como alguns tropeçantes na Língua). Já li aqui e acolá. E foi o suficiente para ficar com água na boca. Por muitas razões. Primeiro, porque não é raro o José Miguel falar ma-ra-vi-lho-sa-men-te de boa comida e de vinhinho do melhor. Segundo, porque, sendo o que acabo de dizer do menos relevante no livro, José Miguel tem a arte de falar de coisas sérias com um humor sofisticado e culto, com graça (também com sentido lírico, é certo) e com uma sensibilidade poética especialíssima e indeclinável (quem lê os seus textos no Facebook sabe-o bem). Terceiro, porque há muitos e bons assuntos aqui, começando pelos amigos, pela família, pelos colegas, pelo círculo bracarense e pela paisagem minhota, e, claro está, passando pela Literatura (que bom ainda haver quem fale bem e com conhecimento de Camões, de Camilo, de Cesário, de Pessanha, mas também de Ruben A., de Saramago, de Herberto Helder…). E passando sobretudo pelo Prazer (com P grande) da Leitura (com L grande), a leitura a sério, a chamada leitura literária feita por quem ama as palavras como poucos. Vê-se logo, aliás, quando nos centramos nesta escrita faladora (também) de leituras: verifica-se no léxico, na sintaxe e na sua fluência, nas imagens, na coloquialidade imprimida à prosa – esta aprendida, avento eu, na experiência teatral. Que José Miguel é um poeta da prosa. Aprendeu-o (desculpa, José Miguel) em Vieira, em Garrett, noutros e talvez, sobretudo, em Raul Brandão, uma das suas linhagens. Eu digo a Literatura e preciso acrescentar: o Teatro. Até porque José Miguel é (quase posso dizer: sempre foi) um grande homem do Teatro. Como estudioso e pesquisador, como encenador, como actor, como dizedor de Poesia, como Professor – daqueles professores como quase já não há (em Braga, em França, de novo em Braga, no secundário, na Universidade). 

Ler os diários de José Miguel Braga (e venham, venham os outros volumes depressa, que este é só de 2020, do tempo pandémico – e que amostra é!), ler estes diários é ter permanentemente na língua (e como ele fala da Língua) o sabor de uma textualidade que não conseguimos pôr de lado. E que gosta de desafiar a nossa inteligência leitora.

Poderia continuar enumerando, descrevendo, porque há muitas histórias, por aqui, muita crónica, muitas deambulações, muitas impressões brandonianas, tanta coisa.

Digo-lhes: procurem este livro urgentemente e leiam-no, leiam-no, degustando cada fragmento. Eu adoro livros de estrutura fragmentária e poderia falar aqui longamente sobre o fragmentarismo diarístico, tema de que fui um quase-nada especialista, durante a minha investigação de doutoramento (concluída há vinte anos) sobre Luísa Dacosta– escritora que eu sei que José Miguel igualmente aprecia – e sobre a escrita autobiográfica desta autora, que inclui dois belos volumes de diário. Procurem este livro (cuja edição – bela e digna edição –honra a Universidade do Minho) e desfrutem da sua leitura. Até porque José Miguel Braga – dramaturgo, autor de ficção, poeta, diarista, ensaísta… – é pessoa de qualidade. Na sua sensibilidade, na sua generosidade, na sua ironia tranquila e no seu sentido crítico, nunca panfletário, sempre inteligente. E exigente. 

Roam-se. Roam-se de inveja. Eu já tenho o livro. E vocês ainda não. 

Ah, e vou já guardar esta frase da p. 170 para os 50 anos de Abril: «Leio o 25 de Abril como se estivesse a nascer.» E vou guardar o fragmento lindíssimo dedicado a uma amiga comum de que muito gostamos: Gracinda Castanheira: uma professora que não se consegue esquecer e outro ser humano de qualidade, com um olhar e um sorriso de qualidade. Uma «sereia» (p. 186)? Acho que sim. 

Se este país não fosse a merda pequenina que por vezes é, minado pela maledicência, pelo presentismo, pelo umbiguismo apressadista e pelo amiguismo, talvez estivesse à altura de reconhecer José Miguel Braga como um dos prosadores de eleição das últimas décadas, em Portugal.

 

20-9-2023

 

José António Gomes

IEL-C da Escola Superior de Educação do Porto

 

domingo, 21 de maio de 2023

Porto, Maneira de Olhar: crónicas e memórias, de João Pedro Mésseder




Porto, Maneira de Olhar: crónicas e memórias (LeYa | ASA, 2023) é uma viagem pelo Porto, o de agora e o de ontem, de diferentes ontens. Um Porto coado pelo meu olhar da infância, pelo meu olhar da juventude, e pelos olhares das minhas sucessivas idades adultas (que várias são já…). Um Porto coado, principalmente, pela lente da memória, mais bem focada umas vezes, outras menos. O Porto da Ribeira, do Bonfim, do Covelo, do Bonjardim, da Fontinha, do Pinheiro Manso, de Nevogilde, da Foz e de muitos outros lugares. O Porto de variadas gentes – como a empregada da Flor de S. Brás, os meus pais, minhas tias… Ou como Luísa Dacosta, Eugénio de Andrade, Manuel António Pina, que por estas páginas por vezes andam. O Porto onde comecei a querer bem aos livros, ao cinema, à música e à arquitectura…

Porto, Maneira de Olhar está longe de ser apenas uma série de percursos pela urbe. É também uma revisitação fragmentária da minha própria vida numa cidade ímpar, que, com o seu pedigree de granito, livre e republicano, seu modo de ser e de estar, sua geografia única, jamais perde no confronto com tantas outras que me marcaram para sempre, na Europa, em África, na Ásia ou nas Américas.

Nos percursos, uma que outra vez, a companhia da minha filha Inês Ramalhete Gomes, ela própria calcorreadora da cidade. Uma caminhadora, convém dizer, de talentoso olho fotográfico. Daí as fotos que este livro inclui, que o valorizam e que selam uma amorosa cumplicidade antiga.

Sinceramente espero que a leitura destas crónicas e memórias divirta quem a elas queira dedicar alguma atenção, que essa leitura toque e faça pensar. E que estimule o/a leitor/a à descoberta ou redescoberta desta cidade tão antiga e singular.

 

João Pedro Mésseder

 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Entre ‘O Rito do Pão’ e ‘O Que É Feito de Nós’ – David F. Rodrigues, uma voz poética singular

  

Usarei aqui duas categorias que não são estéticas mas que me servem para situar um pouco a poesia de David F. Rodrigues. Passo a explicar: assim como existem pessoas «muito dadas» e outras, mais fechadas, mais reservadas, tenho para mim que existe uma poesia moderna e contemporânea que se  mais e outra que, em contraste, reclama do leitor um esforço maior de leitura e releitura, considerando que nitidamente esta segunda apresenta mais pontos de indeterminação semântica do que a primeira. Vou dar exemplos. Dão-se mais, permita-se a expressão, as escritas dum Régio ou dum Joaquim Namorado, dum Sebastião da Gama ou dum António Gedeão, duma Sophia de Mello Breyner Andresen ou dum Manuel Alegre; dão-se menos a escrita paùlista e interseccionista de um Pessoa, os Poemas Surdos de um Edmundo de Bettencourt, o surrealismo de um António Maria Lisboa, a poesia dum António Ramos Rosa ou mesmo dalguns poetas de Poesia 61, como Fiama Hasse Pais Brandão, isto para não falar no Carlos de Oliveira de Pastoral ou em Herberto Helder. Esta espécie de asserção introdutória não envolve, sublinhe-se, um juízo de valor crítico nem a em relação a uma tendência nem em relação à outra. 
    A poesia de O Rito do Pão (2.ª ed. reescrita e acrescida, 2021) e de O Que É Feito de Nós (2.ª ed. actualizada, 2022), cujas primeiras edições datam de 1981 e 1988 respectivamente, está mais próxima desta segunda categoria de poetas, até por razões geracionais. Embora jovem de mais para pertencer ao tempo do grupo de Poesia 61, certo é que David F. Rodrigues (n. 1949, Ponte de Lima) colhe ainda destes poetas certa obsessão pela opacidade da linguagem, na procura duma não discursividade, numa escrita contida e depurada que acabará por ser levada a um limite por poetas duma geração posterior (como é a de David F. Rodrigues), também por alguma influência dum poeta admirado pelos de Poesia 61, ainda que mais velho do que eles: António Ramos Rosa – talvez não por acaso convocado, por via duma pequena epígrafe a modos que posfacial, para fechar O Rito do Pão. Em alguns destes poetas a que me refiro, o cuidado posto na combinação da sintaxe poética com o ritmo e a dicção tornará a sua linguagem mais opaca e antidiscursiva ainda, nomeadamente pelo recurso a elementos estilísticos que, em David F. Rodrigues, aliás são recorrentes: o hipérbato, em suas diversas formas, e a elipse, e, ao nível versificatório, o enjambement. No poeta que aqui nos ocupa, o abandono das convenções pontuacionais assim como a opção pela minusculação reforça, é certo, este traço, mas também põe deliberadamente em evidência a palavra na sua nudez cristalina e na sua assumida pobreza (leiam-se os versos já referidos de Ramos Rosa (v. Rodrigues, 2021: 59) e a alusão que faz à «pobreza» da sua própria «escrita»).
    Dito isto, importa abrir um parêntese para precisar que se a poesia de David F. Rodrigues, nestes livros, é como estou a procurar caracterizá-la, já o seu autor, esse, considero-o uma pessoa particularmente dada e afectuosa, isto é, um bom amigo e um colega excelente, de temperamento convivial e bondoso. Uma pessoa que muito prezo e admiro. Tal como admiro a sua produção literária, quer como poeta e autor de narrativas quer como ensaísta e investigador.
    Voltemos então à poesia para acrescentar que esta espécie de empenho na criação duma linguagem outra, apostada na contenção discursiva, cheia de pontos de indeterminação, de termos e de passos de cariz polissémico e até de ambiguidades de sentido, deriva, por assim dizer, de uma desconfiança – radicada já no simbolismo e nos modernismos, atravessando a segunda metade do século XX e chegando aos nossos dias – em relação à fiabilidade comunicacional da palavra e à correspondência entre pensamento e verbo. Decorre ainda de um cansaço relativamente ao lugar comum, ao desgaste da palavra nos média, no discurso utilitário quotidiano e no discurso político. Por isso, a poesia de David F. Rodrigues pretende ser sempre resgate do cristal da palavra, como se desejasse, assim o queria Mallarmé (referindo-se a Poe) «donner un sens plus pur aux mots de la tribu». É isto que em parte explica a bela epígrafe de Raul Brandão que abre O Rito do Pão: «É com palavras, que são apenas sons, que tudo edificamos na vida. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto e o espanto» (cit. por Rodrigues, 2021: 7).
    Constituída por dezassete poemas, a primeira e principal parte de O Rito do Pão é em boa verdade um hino magnífico e sentido ao ciclo do pão, sem dispensar certa implicação erotizante envolvida no maneio da terra, hino em que o poeta saboreia amorosamente não apenas o seu referente mas também os signos de maravilhosa ressonância poética a que deita mão, na sua rigorosa arte combinatória: húmus, semente, leito, alfobre, leira, soagens, relhas, vessadas, leivas, grade, arado, espiga, forno, arcas… Permito-me destacar esse poema belíssimo que é: «o lençol decora as leiras…» (Rodrigues, 2021: 12). A esta parte intitulada precisamente «o rito do pão» segue-se, mais curta, «o vagar da uva», cujos sete poemas se mantêm num registo semelhante aos da primeira parte e com ela, de certa forma, se articulam, nesse binómio de algum modo inseparável e de repercussões bíblicas e crísticas que é o pão e o vinho. Com composições de inegável beleza e sugestividade, o terceiro momento, «o corpo gémeo» – em que o campo léxico-semântico de corpo está representado em quase todos os poemas – reforça a ambiguidade do conjunto, naquela medida em que tanto nos confrontamos com uma sedutora conversão do mar em poema e do poema em mar (e David F. Rodrigues, como aqui se comprova, não é apenas um homem da terra e do rio, sendo também a sua escrita uma adicta da natureza costeira e do oceano) como nos sentimos voyeurs de uma aventura que o desejo tece na forma de palavras em sua ligação a um corpo amado. Dois exemplos belíssimos, neste aspecto, são os poemas oitavo, «o orvalho acende pela manhã…», e nono, «o rio cresce até à boca…» (Rodrigues, 2021: 48 e 49).
    Avançando pelas mãos de metáforas originais, da vertente aforística e de versos próximos do haiku que já marcam algumas composições de O Rito do Pão, chegamos a O Que É Feito de Nós
    A segunda obra surpreende, desde logo, pela sua natureza de livro de poesia ilustrada (trinta desenhos), tarefa gozosa de que se encarregou o pintor Francisco Trabulo. O traço, as formas e cores, o seu claro-escuro fazem sonhar o texto e, consequentemente, convidam o próprio leitor a sonhar, ao mesmo tempo que destacam elementos concretos do poema e enfatizam sentidos. 
    Sendo uma obra porventura mais reflexiva e filosófica, sem perder em sensualidade verbal, mais uma vez a polissemia atravessa todo o livro, a começar pelo título, permitindo-nos, como vários críticos antes apontaram, ler nós seja como pronome pessoal sujeito seja como substantivo significando laço apertado e unidade de medida da velocidade marítima/fluvial, entre outros valores semânticos. Esta característica, a par duma ambiguidade controlada, surgem, por vezes, activadas também pela partição de palavras em final de verso ou doutras maneiras. Agora há poemas muito breves que se aproximam ainda mais do haiku do que os do livro anterior, como o texto 2 (Rodrigues, 2022: 12), o 24 («o nenúfar agora seja / consentido barco ou porto / horizontal ao sonho indelével das águas») ou o 26 («um fio azul de fonte e / justo / o suicídio dos salmões») (Rodrigues, 2022: 56 e 60), e confirma-se o que a epígrafe de Saint-John Perse e o primeiro poema do livro, também muito breve, já anunciavam: a presença recorrente da água (esse elemento de forte ressonância materna), nomeadamente por meio de palavras da sua esfera léxico-semântica, como rio, termo aqui relevante.
    Mas, à medida que vamos progredindo na leitura, apercebemo-nos de alusões a cenas de infância, à mãe, à descoberta do corpo e do amor, à relação humana com outros e com a natureza, a um desabrochar, se quisermos a um crescimento comparável ao do próprio rio. E começamos a eventualmente compreender o título de uma obra que fala de um nós, logo de um eu e de outrem, ao mesmo tempo que se refere aos nós-laços que ligam o sujeito a outros, ao tempo que é o seu e ao mundo, ou aos mundos. Os que o constroem e os que ele próprio constrói. 
    Difícil eleger uma composição, tão belas e comoventes várias delas são. Mas fixo-me num dos poemas à mãe («discreta levantas da arca…» – Rodrigues, 2022: 32), um quase-soneto estrategicamente situado num quase-centro do livro, a pouco menos de metade deste corpus textual formado por trinta composições.
    Quase a terminar, lembro que também este livro, inicialmente surgido em 1988, sofreu depurações várias, como eliminação de maiúsculas (repare-se que ambos os títulos são, nestas reedições, grafados com minúsculas, tal como na capa o nome do poeta) e supressão de pontuação – aspectos que não o são apenas de grafismo, possuindo implicações semânticas e de identidade estilística e autoral. O escritor quis ainda reunir, numa segunda parte do volume, uma coleção de textos breves produzidos por diversas vozes críticas quando da saída da primeira edição de O Que É Feito de Nós. O conjunto aclara a leitura mas sobretudo dá conta da recepção crítica feliz da obra à época em que veio a lume pela primeira vez. Contudo é principalmente o prefácio de Mário Cláudio, a pp. 5 do livro, o texto que lança luz sobre a série dos trinta poemas, ao afirmar: «é de uma nação tribal que nos conta, sobretudo, esta curta saga, povoada pela frágil meninice portuguesa, a que no “pão terno das camisolas” se reconhece, na genuinidade dos sentidos praticados pela desvairada inocência do homem que em amor os traduziu. Daí que se abracem estas folhas como um corpo verídico, de sangue circulante nas artérias do nevoeiro, tão próximo e tão longínquo como os que ao poeta autêntico foi dado experimentar».

    Magnífico «corpo» e espírito, acrescentarei eu, em viagem pelo rio da vida. 


Referências bibliográficas

Rodrigues, David F. (2021), O Rito do Pão, 2.ª ed. reescrita e acrescida, Porto: Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. 

Rodrigues, David F. (2022), O Que É Feito de Nós, 2.ª ed. actualizada, Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo (ilustrações de Francisco Trabulo).

Ponte de Lima, 19-11-2022


José António Gomes

Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais (IELC) do INED da Escola Superior de Educação do Porto

 

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Coração Modelado em Labareda: autoficção e um certo Portugal de 50 e 60

Como a ficha técnica assinala, o título da obra de Domingos Lobo em apreço parte dum verso de Egito Gonçalves – pertencente à chamada segunda geração neo-realista e associado a uma poesia da resistência ao status quo salazarista, nos primeiros livros do poeta. Coração Modelado em Labareda – Diário marginal de um adolescente no país do “botas” (Lobo, 2022) – é esse o título acrescido de subtítulo – abre as primeiras pistas de leitura, remetendo para a ideia de formação, de modelação de uma personalidade, uma modelação não neutra, morna ou tranquila, mas muito a quente e marcada pela inquietude e pela tensão. Por outro lado, o subtítulo abre a probabilidade de um discurso de primeira pessoa, produzido por um sujeito que narra a sua própria vida durante a adolescência ou até à adolescência. «Marginal» porquê? Um diário à margem da vida, logrando apenas captar, fragmentariamente, parte dela, como todos os diários? À margem da literatura – como sempre estiveram os diários? Escrito por um jovem à margem do seu próprio núcleo familiar ou do establishment escolar fascista? Por último, a referência ao «país do “botas”», ou seja, a Portugal, no tempo do ditador Salazar. Precise-se um aspecto mais: constituído por quarenta e seis capítulos curtos, precedidos de um poema em que se alude a Nagosela («espaço da memória essencial», p. 15), cada título desses capítulos remete o leitor para um ano em particular, havendo sempre, sobre cada ano, mais do que um capítulo. A acção é narrada respeitando a ordem cronológica dos acontecimentos. Encontramos, portanto, uma acepção alargada de «diário», que reenvia não para dias mas sim para anos ou para partes de anos – embora o narrador nos diga em certo passo do texto que, efectivamente, mantém um diário.

Que nos conta, então, este Coração Modelado em Labareda? Muita coisa. É simultaneamente a história da vida de um rapaz da pequena burguesia lisboeta, entre os seis e os dezanove anos, com relevo maior conferido aos períodos da infância e a adolescência. É ele o protagonista, é ele o narrador, em todos os capítulos, excepto no trinta e nove, no qual é concedida voz à criada Rita, em simultâneo amante do pai. E cresce, forma-se no confronto natural com os que o rodeiam e que são muitos.

Diria que essa história do tempo do «botas» foca dois complexos temáticos fundamentais. Por um lado, o despertar da sexualidade e o seu desenvolvimento, indissociável dum conflito com a «moral» estreitíssima – hipócrita, cheirando a sacristia e a mofo – e com a questão dos costumes, tal como formatados no contexto da ditadura fascista. Por outro lado, a narrativa é a pequena, mas em vários aspectos tensa e dramática, história da família do protagonista e do seu entorno social, ora em meio urbano ora em quadro rural. Uma família que habita na Rua do Arco do Cego (e cujos ancestrais, do lado materno, são de Nagosela): Maria Lobita (mãe), Armando (pai), Ramiro (irmão), o avô materno e ainda Rita (criada e mãe duma criança cuja paternidade é ambiguamente atribuída a Armando); são mencionados ainda dois irmãos mais velhos que não vivem na mesma casa. Amigos ou companheiros do protagonista, como Álvaro (sobretudo este), Pedro, Perneta (em Nagosela, a simbolizar sonhos de voo-escape) e outros ainda, gente como o primo Mário (de Nagosela), o professor Anselmo (cruel e de «ar azedo», p. 99) ou, também em Lisboa, o La Minute, fotógrafo gay, e Fortunato, o marçano assassino, são algumas das outras personagens que rodeiam o herói. Alguém que sabemos ser Lobo, de apelido, tal como o autor.

Temas como a escola salazarista, seus pretensos valores, suas práticas antipedagógicas e desumanas; o anti-salazarismo e a perseguição fascista dos opositores (quer o avô quer o pai são viscerais opositores, no plano estritamente individual, sem qualquer acção organizada contra o regime, ainda que o pai venha a ser preso por algum tempo); a repressão pidesca e a censura; as eleições presidenciais fraudulentas de 1958; o início da Guerra Colonial em 1961; e outros temas ainda marcam o cenário histórico do início da segunda metade do século XX em que decorre a vida deste narrador-personagem e da sua família até à morte do avô, até ao emergir de um rumo vocacional e até à procurada saída para um mundo de liberdade, por via de uma primeira viagem a França por volta dos dezoito-dezanove anos. Será uma das primeiras fugas passageiras à opressão do Deus-Pátria-Família fascista (evocado em vários momentos da narrativa e no capítulo 44, já perto do término da obra) e ao peso de «uma família a desmoronar-se» (p. 155).

Direi, contudo, que o anseio de liberdade é talvez a força motriz quer deste herói «modelado» na «labareda» do seu tempo histórico (labareda sociopolítica e de cariz sexual) quer do próprio romance. E utilizo, finalmente, aqui este termo, porque o vi usado pelo próprio escritor num epitexto (mas já lá iremos à qualificação genológica deste texto). E, a ser assim, parece-me que existem neste livro traços do chamado romance de formação.

Não se pense, contudo, que esta atmosfera de tensão abafa outras componentes fortes do livro. Bem pelo contrário, tonifica-as e potencia-as. 

Aprecio, em primeiro lugar, o saber detectável na construção das personagens, marcantes e verosímeis figuras de-carne-e-osso e não apenas de papel. Quer as planas, como La Minute ou Fortunato quer as modeladas como a mãe e principalmente o avô (a grande referência-para-a-vida assumida pelo narrador protagonista). 

Refiro-me, em segundo lugar, à dimensão humorística, que é recorrente na obra, e que passa pelas vertentes do cómico de carácter, do cómico de situação e do cómico de linguagem. E também à presença duma estética do grotesco – que mereceria desenvolvimento particular a propósito desta obra e, se calha, doutras de Domingos Lobo –, a qual, por exemplo, me leva a sinalizar a «atracção por cenas mórbidas» (p. 130), pela deformação, pelo hiperbólico em Coração Modelado em Labareda. Outro aspecto, articulado com o que acabo de mencionar, e até com o cinema (amiúde convocado e homenageado neste livro), prende-se com certa inclinação para os episódios rocambolescos de recorte popular. Este aspecto projecta-se depois no plano da própria linguagem, tanto a usada pelo narrador como a que se escuta na boca das personagens (registo, de passagem, o talento de Domingos Lobo enquanto recriador do discurso oral e da linguagem de rua). E, neste ponto ainda, não consigo deixar de evocar alguns antecedentes nobres como o Dinis Machado do extraordinário romance-tão-de-Lisboa O Que Diz Molero (1977), que marca a ficção nacional do pós-25 de Abril; ou o Mário Zambujal da Crónica dos Bons Malandros (1980), aliás convocado numa das epígrafes; ou como certos textos de Aquilino Ribeiro, beirão de cepa (como os Lobos), não por acaso certeiramente lembrado, a páginas 89 deste livro. Termino com uma proposta de leitura do texto enquanto narrativa enquadrável no campo da chamada autoficção. 

Com efeito, temos, neste livro, um sem número de elementos que nos orientam para a aceitação de um pacto autobiográfico, o principal dos quais é a identidade onomástica entre o autor e o narrador-protagonista (autodiegético), para não falar das questões da localização espacial, em que, além de Lisboa e da zona do Arco do Cego, se destaca Nagosela onde o próprio Domingos Lobo nasceu, como o tal espaço de «caminhos de pedra ferida / de lagares de granito / odores antigos / a mosto e a resina no esconso dos assombros» (p. 15), a que alude o poema inicial. Nagosela: para o protagonista, lugar de múltiplas descobertas, lugar do despertar do corpo e do desejo, lugar maternal e matricial por excelência. Mas também evidência da pobreza, do desamparo social e do analfabetismo que grassavam no país, em especial em regiões mais deprimidas do interior.

Por outro lado, o próprio autor, num «Aviso prévio» (p. 11), nos alerta para a condição ficcional da sua obra, «baseada em alguns factos reais e históricos».

Vejamos, então, com o auxílio da estudiosa e crítica brasileira Anna Faedrich, algumas, apenas algumas das diferenças entre autobiografia e autoficção. Na noção de pacto, «a autoficção se diferencia da autobiografia e do romance autobiográfico. Na autoficção, se estabelece com o leitor um pacto oximórico (Jaccomard, 1993), que se caracteriza por ser contraditório, pois rompe com o princípio de veracidade (pacto autobiográfico), sem aderir integralmente ao princípio de invenção (pacto romanesco/ficcional). Mesclam-se os dois, resultando no contrato de leitura marcado pela ambiguidade, em uma narrativa intersticial. A noção de pacto é fundamental para esclarecer o conceito de autoficção, diferenciando práticas distintas dentro do campo da “escrita do eu”.» (Faedrich, 2015: 57)

E a mesma estudiosa prossegue: «a autoficção tem uma forma específica de construção da ambiguidade entre realidade e ficção. Embora a mistura entre realidade e ficção se encontre também em romances históricos e romances autobiográficos, na autoficção é intenção deliberada do autor abolir os limites entre o real e a ficção, confundir o leitor e provocar uma recepção contraditória da obra. A ambiguidade criada textualmente na cabeça do leitor é potencializada pelo recurso frequente à identidade onomástica entre autor, narrador e protagonista, embora existam variações e nuances na forma como este pacto se estabelece» (Faedrich, 2015: 57). 

Não querendo aprofundar neste momento mais o assunto – embora outros aspectos houvesse a considerar –, ouso afirmar que é isto que se passa na narrativa de Domingos Lobo, como penso que o leitor poderá ele próprio comprovar. E por isso Coração Modelado em Labareda talvez deva ser considerado como exemplo de autoficção – aliás uma das tendências mais fecundas da ficção contemporânea. 

Concluo com um convite à leitura deste texto de léxico rico e sugestivo, prenhe de humanidade, de graça e de capacidade de nos pôr a reflectir, de modo aprofundado, sobre o que foram os anos do fascismo e sobre o modo como eles marcaram negativamente muitos e muitos indivíduos, a vida das famílias e dos lugares e a sociedade como um todo.

Domingos Lobo, romancista, dramaturgo, poeta e crítico reconhecido e várias vezes premiado na poesia, na ficção e no teatro, merece que aceitemos o desafio para a leitura da obra e aprendamos a desfrutar deste livro. 


 

Referências

Faedrich, Anna (2015), «O conceito de autoficção: demarcações a partir da literatura brasileira contemporânea», Itinerários, n. 40, Araraquara, Jan./Jun., pp. 45-60.

Lobo, Domingos (2022), Coração Modelado em Labareda – Diário marginal de um adolescente no país do “botas”, Lisboa, Página a Página.


José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais do InED da ESE do Porto

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Ana Luísa


Ana Luísa Amaral (1956-2022) não foi apenas uma poeta de alta, bela e reconhecida voz, em Portugal e no estrangeiro (a sua poesia está hoje reunida em O Olhar Diagonal das Coisas, 2022), e uma autora de livros para a infância e a juventude que devem ser lidos e apreciados: Gaspar, o Dedo Diferente e Outras Histórias, 1998; A História da Aranha Leopoldina, 2000; Auto de Mofina Mendes de Gil Vicente (adaptação), 2008; uma adaptação de A Relíquia de Eça de Queiroz, 2008; Como Tu, 2012; Lengalenga de Lena, a Hiena, 2019. Publicou ainda o romance Ara, 2013, e foi uma excepcional estudiosa de poesia (conhecedora de poetas das mais diferentes latitudes) e uma divulgadora igualmente excepcional, generosa e persistente. Deste ponto de vista, sinto uma dívida enorme em relação a’«O som que os versos fazem ao abrir», na Antena 2, e ao seu notável trabalho de investigação académica (designadamente no campo dos Estudos Feministas), importando lembrar outras intervenções radiofónicas suas, a par das muitas conferências, cursos e oficinas – era uma incansável e entusiástica trabalhadora das letras. Também como ensaísta e como tradutora (da sua paixão, Emily Dickinson, mas também de Shakespeare, de John Updike, de Louise Glück, de Margaret Atwood e de muitos outros poetas, para não falar das suas traduções de John Locke, de Virgina Woolf e de Wesker) fica o país a dever-lhe imenso. 

Mas Ana Luísa foi, além disso, uma mulher muito corajosa e livre, que ousou pôr publicamente o dedo em muitas feridas – e que, silenciosamente ou não, acabou às vezes sendo penalizada por isso, como sucede com todas as pessoas de coragem. Foi (e ainda bem) uma poeta com intervenção cidadã e política – o que hoje é cada vez mais raro. Para alguns, quase imperdoável. E isto sem nunca perder a doçura e afabilidade do olhar, da voz, da maneira de estar. 

Tive sempre com Ana Luísa um relacionamento muito cordial. Lembro-me de termos sido colegas na faculdade, em Germânicas – embora, nessa fase, apenas nos conhecêssemos de vista. Tínhamos uma amiga comum, Ana Gabriela Macedo, que foi quem primeiro me falou da sua poesia. Há muito, muito tempo. Foi membro do júri das minhas provas de doutoramento, em 2003, na Universidade Nova de Lisboa, e membro do júri das minhas provas para professor coordenador de Literatura Portuguesa, na Escola Superior de Educação do Porto, em 2006. Impecável em qualquer destas duas situações. Colega de irrepreensível trato, correcção e amabilidade. E de enorme qualidade, no plano académico. Devo acrescentar que foi boa e justa professora de ambos os meus filhos, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.


Escrevi sobre livros seus para a infância e, na minha faceta João Pedro Mésseder, reencontrámo-nos em 2005-2006, com outros escritores portugueses e galegos, no projeto Estafeta do Conto da Xunta de Galicia e da Direção Regional de Cultura do Norte (promovido por Xavier Senín Fernández e Helena Gil Coutinho), o qual deu origem à publicação de duas novelas juvenis bilingues. A de Ana Luísa: Passos de música, caminhos de água/Pasos de musica, camiños de auga (em co-autoria com Fina Casalderrey, Vergílio Alberto Vieira e Xabier Docampo – um grande escritor e amigo também já desaparecido). Tempos bons e luminosos, perdidos (ou ganhos) entre o norte de Portugal e a Galiza. 


Hoje, os leitores de poesia e o país como um todo perderam um ser humano e uma artista de excepção. Saibamos honrar a sua memória e fazer bom uso do muito que nos lega. 

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MÚSICAS, de Ana Luísa Amaral

 

Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.

E deito-me a seu lado,

a cabeça em partilha de almofada.

 

Os sons dos outros lá fora em sinfonia

são violinos agudos bem tocados.

Eu é que me desfaço dos sons deles

e me trabalho noutros sons.

 

Bartók em relação ao resto.

 

A minha filha adormecida.

Subitamente sonho-a não em desencontro como eu

das coisas e dos sons, orgulhoso

e dorido Bartók.

 

Mas nunca como eles,

bem tocada

por violinos certos



6-8-2022

 

José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais do inED da ESE do Porto

 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Voltar a Luísa Dacosta e à “Pedagogia do Deslumbramento”

Foi há três dias, a 16 de Fevereiro, o aniversário da minha Amiga Luísa Dacosta (completaria 95 anos). E fez há quatro dias sete anos que nos deixou. Era um ser humano de fibra e de palavra livre, intransigente defensora da mulher e dos seus direitos, personalidade afectuosa e terna, refinada e de enorme sensibilidade às artes visuais (escreveu para/sobre diversos artistas), mas sempre fiel às suas raízes transmontanas (nasceu em Vila Real). E fiel igualmente aos seus amigos, mortos ou vivos: Irene Lisboa, Régio, Júlio, Padre Joaquim Alves Correia, David Mourão-Ferreira, António José Saraiva, o bibliotecário Manuel Lopes, Teresa Rita Lopes, Jorge Pinheiro, José da Cruz Santos, Margarida Santos, Elvira Leite, José Manuel Esteves, Bernardette Capelo, Cristina Valadas, Paula Morão, Violante Magalhães… Fiel se manteve também às suas referências literárias: Hans Christian Andersen e os contos de fadas, Dostoievski, Gogol e Tchekhov, Katherine Mansfield, Joseph Bédier (por causa do mito de Tristão e Isolda), Lorca, Fernão Lopes, Sá de Miranda, Camões, Vieira, Eça, Raul Brandão, Pessanha, Aquilino (que ajudou, no Porto, a homenagear ainda em vida do mestre), Irene Lisboa, Graciliano Ramos, Cecília Meireles… Sem falar na Bíblia e n’As Mil e Uma Noites, que toda a vida leu, releu, estudou.

Trás-os-Montes fê-la escrever coisas de forte poder evocativo, comoventes e, aqui e acolá, divertidas até – pois era senhora de uma escrita poeticamente muito trabalhada e sofisticada – como Província (1955), o seu primeiro livro de contos, e obras para a infância como Teatrinho do Romão (1977), Lá Vai Uma… Lá Vão Duas (1993) – Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças –, Robertices (1995), a juntar a admiráveis páginas de diário. Entre Lisboa e Vila Real nasceram os contos de Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu (1969), a tenderem já, aqui e acolá, para o auto-retrato. Em dado momento, graças ao empenho de gente boa e culta como Jorge Ginja e Helena Gil, veio a ser homenageada também na sua terra e, na sequência dessa dinâmica, fui convidado a organizar uma antologia de textos seus de raiz transmontana. Assim nasceu Houve um Tempo, Longe – Vila Real de Trás-os-Montes na Obra de Luísa Dacosta (2005), obra para a qual redigi um breve estudo.

O mar e os seus mitos, a praia de sargaceiros, a terra em redor, e sobretudo as doridas mulheres e as crianças fizeram-na escrever os seus dois melhores livros: as extraordinárias crónicas de A-Ver-O-Mar (1980) e Morrer a Ocidente (1990). 

Mas merecem sempre revisitação os seus “romances truncados”, como gostava de os classificar, Corpo Recusado (1985) e O Planeta Desconhecido e Romance da que Fui antes de Mim (2000), textos ficcionais de fundo autobiográfico, e os seus dois volumes de diário: Na Água do Tempo (1992) – Prémio Máxima – e Um Olhar Naufragado (2008).

O Príncipe que Guardava Ovelhas (1971), O Elefante Cor de Rosa (1974), A Menina Coração de Pássaro (1978), História com Recadinho (1986), Sonhos na Palma da Mão(1990) e outros títulos impuseram-na também como uma voz singular na nossa escrita literária para a infância. A rendilhada poeticidade da sua prosa e a assumida ou indirecta relação intertextual com mitos gregos e com clássicos (contos de Andersen; Le Petit Prince…) concorreram para essa singularidade, invariavelmente cunhada com uma epígrafe inicial, que era também um princípio existencial: «No sonho, a liberdade…».

Por último, diga-se que, além de poetisa – e de crítica e historiadora da literatura na sua juventude –, Luísa Dacosta foi uma professora de Português de excepção, que apostava, sobretudo, num ensino da língua solidamente assente no recurso à grande literatura e à grande arte (mesmo no 2.º ciclo), na comunicabilidade e na relação humana, buscando aquilo a que gostava de chamar uma «pedagogia do deslumbramento». Nas suas aulas de Português também entravam a música, a pintura, o cinema de Chaplin, a mímica de Marcel Marceau… Deste ponto de vista, e no quadro da educação literária, os seus livros O Valor Pedagógico da Sessão de Leitura (1974) e principalmente as antologias sábia e afectuosamente comentadas (e ilustradas por Jorge Pinheiro), De Mãos Dadas Estrada Fora(4 vols., 1970-2002) continuam a ser do que de melhor se fez em Portugal. 

Costumo dizer: deseja iniciar alguém (criança já leitora, jovem, adulto) no universo do literário? Ponha-lhe nas mãos De Mãos Dadas Estrada Fora.

Sobre a obra de Luísa Dacosta escrevi uma tese de doutoramento que Clara Crabbé Rocha orientou e Paula Morão arguiu. E redigi numerosos ensaios. Foi n'«um tempo longe». 

 

José António Gomes, 19-2-2022

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto